Candura


Cena do filme "A fita branca" (2009)

ATENÇÃO! SE VOCÊ AINDA NÃO ASSISTIU AO FILME “A FITA BRANCA”, HÁ SPOILERS!

Em 1910, Freud escreve: “É facílima de explicar a razão por que a maioria dos homens (…) nada querem saber da vida sexual da criança. Sob o peso da educação e da civilização, esqueceram a atividade sexual infantil e não desejam agora relembrar aquilo que já estava reprimido”. O filme “A fita branca” se passa na mesma época em que a psicanálise começava a incomodar: uma época em que a euforia pelo progresso do início do século mascarava o mal-estar social que viria a explodir na forma da I Guerra Mundial. O longa-metragem de Michael Haneke, formado em Psicologia, Filosofia e Teatro, traz à tona muitas questões que perturbam o espectador; o drama de Nina, em “Cisne Negro”, parece ingênuo perto da angústia vivida por toda a pequena aldeia.

Os personagens são divididos em dois núcleos: adultos e crianças. A resignação e a vingança são sentimentos presentes em ambos, frutos diretos do sufocamento existencial sofrido pelos habitantes. A violência resulta das diversas repressões ali presentes: econômica (o barão), sexual (o pastor), emocional (o médico) e, até mesmo, intelectual. Ao longo de toda a narrativa, o tema punição é explorado; isso não se dá, entretanto, da maneira típica das fábulas, pois não se sabe quem é o responsável pelos atos de crueldade nem o que o levou a praticá-los. A angústia é onipresente em todos os moradores da aldeia, cuja dinâmica deve ser, em parte, entendida tal como “O cortiço”, de Aluísio de Azevedo: a aldeia é um conjunto, o sofrimento de um personagem nunca será compreendido em sua totalidade se isolado do sofrimento daqueles que o cercam.

Dessa forma, esse sentimento inominável e aterrorizante que paira sobre o pacato local leva o espectador a naturalmente procurar por culpados. Essa tentativa será frustrada, pois, apesar de as perversões e desvios dos adultos serem retratados como as sementes do mal que se alastra, nunca se tem absoluta certeza de compreender o que acontece entre as pessoas. Narrada por um senhor, que na época era um jovem e sonhador professor, a história dá detalhes da visão dos adultos; entretanto, o pouco que se sabe da vida das crianças é somente aquilo que de alguma forma os adultos presenciaram ou ficaram sabendo depois. As peculiaridades da vida das crianças nunca são explicitadas; há apenas a suspeita de que há algo de estranho acontecendo entre elas.

O subtítulo original (Uma história alemã de crianças) reforça a tese defendida pelo narrador: a chave dos mistérios está nas crianças. Vários indícios são deixados ao longo do filme para aumentar essa suspeita: a filha do administrador da fazenda declara ao professor ter sonhos proféticos em relação aos trágicos incidentes que chocam a população; Martin, filho do pastor, sabe que o celeiro está pegando fogo, mesmo estando atado à cama (medida drástica adotada pelo pai para conter seu recém-despertado desejo sexual); as crianças em geral parecem saber sempre de tudo e de nada simultaneamente. Seria a mensagem do filme a mesma encontrada junto ao menino Karli, a de que os pais irão pagar pelos seus pecados através dos filhos vingativos?

Não se sabe ao certo. Até o último momento do filme (sem trilha sonora, exceto por poucos momentos em que as crianças cantam no coral da igreja), carrega-se a dúvida. Mas mesmo que se soubesse quem armou o acidente do cavalo, o incêndio e a violentação das crianças: ainda assim se saberia de quem é a culpa? O mal-estar que surge da repressão adquire novas cores quando se enxerga-o no contexto sócio-histórico retratado: a violência na aldeia pode ser vista como a semente do ódio nazista, que com uma facilidade assustadora se alastrou por toda uma nação e até hoje seduz pessoas de todas as idades. De certa forma, não é de se surpreender que Freud tenha elaborado suas ideias justamente nesse momento da história. A moral machista, autoritária e elitista exclui, suprime e violenta. As atrocidades cometidas contra mulheres são numerosas; uma delas, talvez a mais marcante, está representada no diálogo entre o médico e a parteira, quando ele diz que só mantém um relacionamento sexual com ela porque o bordel era muito longe e que, na verdade, ela despertava um profundo nojo nele (comentário aceito com uma resignação comparável à passividade com que Anna aceita os abusos do pai). A diferença entre classes não é só aceita como  também é celebrada: após terminarem a colheita, os camponeses podem se divertir. A morte de uma camponesa durante o trabalho e a tentativa frustrada de vingança de seu filho reforçam a resignação dos trabalhadores explorados.

Vocês estão escondendo algo de mim, diz o professor a seus alunos. E o que poderia ser? “Eu desejo matar meu irmãozinho”. “Eu desejo matar meu pai”. “Eu desejo ter prazer clandestino”. “Eu desejo desejar”. A supressão de certos impulsos da alma humana é essencial para o desenvolvimento em sociedade, mas o uso abusivo e perverso da autoridade jamais será justificável. Em tempos nos quais a lei que proíbe os pais de castigarem os filhos com punições físicas é questionada, é preciso refletir: o uso da violência é mesmo a melhor medida para prevenir a violência futura? A maneira como tratamos as crianças ensina a elas uma maneira de se tratar o mundo. Resignificar o papel da autoridade nacional, parental e religiosa é algo fundamental para a abertura ao diálogo, que possibilita a superação de situações que se repetem geração a geração e originam a violência. Que esse filme sirva de conscientização para que, no futuro, não precisemos de uma fita branca para nos lembrarmos de que há maneiras não destrutivas de se resolver conflitos.

3 Respostas para “Candura

  1. Filumena 1 de dezembro de 2011 às 20:59

    Realmente é muito interessante o fato de você conseguir unir no texto os aspectos de crítica do filme e as interpretações psicanlíticas, tornando o texto muito mais rico e até educativo, no sentido de divulgar conhecimento e idéias, que normalmente são de difícil compreensão para nós que não dominamos a linguagem psicanalítca.
    Excelente texto mais uma vez….

  2. paulichas 13 de março de 2011 às 21:54

    Um dos meus filmes preferidos.
    Gostei muito do seu texto, Vic, mas eu já tinha certeza que gostaria. A essência do filme está aí.

  3. Leonardo Fernandes 9 de março de 2011 às 20:40

    É de fato excelente para seu lado jornalista o fato de você fazer psicologia também. Seus artigos (pelo menos este e o do Cisne Negro, que foram os dois que eu li até agora!) tornam-se brilhantemente embasados. Agora, infelizmente, ainda não vi A Fita Branca – estou para ver desde o ano passado, em que o Ciro comentou na aula…

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